Nesse dia do ano 2000, a cabeleireira do lar não estava disponível e D. Maria do Carmo precisava mesmo de lavar a cabeça e pentear-se. Decidiu, pois, sair e ir até à cabeleireira do bairro. Não era a primeira vez que D. Maria do Carmo ia ali. Contudo, desta feita, vendo que a cabeleireira era uma senhora africana, teve curiosidade em saber donde viera. Conversa puxa conversa (a gente sabe como é…) e a surpresa apareceu assim de repente, completamente inesperada, mais inesperada do que todas as surpresas.
– Da Guiné – respondeu.
– E donde exatamente.
– De uma aldeia chamada Suzana. Fica situada a 5 km da fronteira com o Senegal, no noroeste da Guiné-Bissau.
– Suzana? Mas foi em Suzana que o meu filho esteve e aí comandou a sua Companhia…
– Mas a Senhora é da família do senhor capitão que morreu na guerra, o capitão Luís Filipe Rei Vilar?
D. Maria do Carmo estremeceu ao ouvir soletrar o nome completo do filho.
– Sim, sou a mãe. Ele morreu, sim, em combate na Guiné. A 18 de fevereiro de 1970… Mas a senhora, que é tão nova, como sabe o nome do meu filho?
– É que, em Suzana, nós veneramos muito a memória dele!
D. Maria do Carmo estremeceu ainda mais.
– Sim? Porquê?
E a cabeleireira começou a desfiar, com entusiasmo, o rosário de benefícios que o capitão conseguira trazer para a aldeia, quando ali estivera em serviço com a sua companhia. Lutara, sim, ele e os seus homens, para defenderem a população, garantiu a cabeleireira; mas o mais importante ainda foi toda a obra social aí levada a cabo, nomeadamente no domínio da instrução, mediante a construção de uma escola, uma escolinha de 25 x 10 metros. «Lutando, construindo e ensinando» era a sua divisa!
Em Suzana chamavam-lhe o Capitão dos Pretos! As crianças eram recolhidas num raio de 5 km para irem à escola e, antes de serem levadas para casa, partilhavam o rancho dos soldados, da sopa deles… Por isso, esses meninos eram apelidados de “sopitos”. E ainda hoje o são!
A surpresa da família
A novidade caiu inesperada. Sobre a comissão de Luís Filipe Rei Vilar, nascido em Cascais a 12 de Novembro de 1941, e, sobretudo, acerca das circunstâncias da sua trágica morte chegaram a divulgar-se informações contraditórias e a família, contristada, preferiu continuar a ficar com a recordação do excelente percurso académico e militar que o filho tivera. Fora brilhante aluno na Escola Técnica e Liceal Salesiana de Santo António, no Estoril; praticara hóquei em patins no Grupo Dramático de Cascais; notabilizara-se na Academia Militar e, nomeadamente, na equitação, tendo participado em vários concursos no Hipódromo de Cascais, que tem hoje o nome de Manuel Possolo, mestre de equitação do Luís.
Essa informação trouxe, pois, de novo à memória os momentos bons e também os maus. D. Maria do Carmo viria a falecer em 6 de Janeiro de 2004. Os filhos Duarte, Manuel e Miguel é que não ficaram sossegados enquanto não tiraram a limpo o que acontecera e qual a razão dessa veneração dos Felupes pelo seu irmão mais velho. Fora-lhe atribuída, a título póstumo, a Medalha de Serviços Distintos Prata com Palma («Diário do Governo» de 11-5-1970), tendo sido destacado, na circunstância, que «no campo da ação psicológica atuou como um verdadeiro apóstolo, conquistando o respeito e admiração das populações, que nele confiavam cegamente;
No campo operacional salientou-se pela firme determinação em bater o inimigo nas zonas de refúgio e pelo exemplo da sua presença nos locais de maior risco». Soube-se depois que, também em Suzana, após a sua morte, fora colocada uma placa em sua memória, hoje desaparecida. O Município de Cascais, por deliberação unânime de 5 de Junho de 1970, dera o nome de ‘Capitão Rei Vilar’ a um arruamento do Bairro Navegador, no mesmo dia em que foi decidido homenagear, no mesmo bairro, a memória de outro cascalense, tal como o Furriel João Vieira, que, aos 23 anos, fora morto em combate, em Angola, a 6 de Agosto de 1965, aluno da Escola Salesiana do Estoril, também ele.
A obra em marcha
Em primeiro lugar, a notícia dada pela cabeleireira causou na família muito espanto e alguma dúvida. Sucedeu, porém, que, em Abril de 2016, o irmão Miguel recebeu a mensagem de um desconhecido, um certo Luís Costa, antropólogo, recém-chegado da Guiné, aonde fora em preparação da sua tese de doutoramento e que vivera quatro meses em Suzana. O teor era o seguinte: «Quero-lhe dar conta que a Memória do seu irmão, Cap Cav Luís Filipe Rei Vilar, comandante da CCAV 2538 […] continua bem viva e respeitada. Os habitantes de Suzana falam com entusiasmo e saudade do seu irmão e contam o interesse e respeito que ele tinha pelas gentes da Guiné em especial pelos Felupes». E, assim, em Janeiro de 2017, no seguimento desta mensagem, os três irmãos Manuel, Duarte e Miguel partiram para a Guiné.
Escreve o Manuel, a 30 desse mês: «Quando chegámos a Suzana, a surpresa! À chegada, tínhamos uma recepção de cerca de 200 crianças a cantarem e a bailarem, todas lindamente penteadas, limpas e bem vestidas. Não estava a acreditar! Toda a população nos esperava! Permanecemos em Suzana 4 dias, alojados nuns casebres da missão católica. Foram 4 dias a conviver com a população, com os Felupes, a etnia local.
Fomos ao sítio onde tudo se passara. Ainda há alguns guias Felupes vivos que incorporaram a Companhia nessa altura e os seus pormenorizados relatos, nomeadamente das circunstâncias da morte do Luís, foram para nós testemunhos muito importantes». Entre outros, o do Padre Zé (José Fumagalli), já com 80 anos, que dirigia a Missão Católica nesse tempo e que conheceu e conviveu com o Capitão, também confirmou essas informações.
As autoridades locais (o Conselho dos Homens Grandes) acolheram-nos, pois, de braços abertos; e a Missão Católica (liderada então pelo Padre Abraão e, posteriormente, pelo Padre Vítor) proporcionou-lhes um básico alojamento, porque, na verdade, Susana é aldeia pobre, minguada de meios. O resultado dessa primeira viagem a Suzana foi a promessa dos irmãos Rei Vilar de continuarem a obra, no que respeitava à educação das crianças, em tão boa hora iniciada pelo irmão Luís Filipe, em circunstâncias assaz adversas.
Foi assim que surgiu, espontaneamente e com esse objetivo, o Projeto Kassumai, que deu origem, em 2020, à constituição da Associação Anghilau («criança», em língua felupe). Foram assim apadrinhadas 35 crianças: a Adelaide da Silva, o André Djejo, a Bequita Ampabagai, o Davide N’Manga, a Necas Sambu, o Olívio Bussa, por exemplo, que aparecem, felizes e tímidas, no vídeo Kassumai, que Casper Steketee e Manuel Rei Vilar realizaram, não apenas para dar conta da vida do irmão Luís, mas, de modo especial, para fazerem jus ao bom acolhimento havido por parte da população e, sobretudo, para motivarem os amigos e familiares a aderirem a este projecto educacional.
Kassumai, o nome do projeto, é a saudação felupe, que significa simultaneamente «felicidade, paz e liberdade». E quando alguém saúda outrem – «Kassumai»! – o outro deve responder «Kassumai Kep», que quer dizer «para sempre!». Um toque de humanidade a reter dos nossos irmãos africanos! Daí até à sugestão de reabilitar a escola e de fazer um edifício a condizer com as necessidades foi um passo.
O Jardim-escola, que se encontrava decrépito, foi completamente reabilitado: renovação do telhado, pavimentação das salas, pinturas das paredes, aquisição de nova mobília adequada ao ensino pré-escolar, arranjos das portas totalmente danificadas, novas instalações sanitárias com duas fossas séticas, criação de duas pérgulas para as crianças tomarem as refeições e brincarem nos dias de chuva e elaboração duma cerca para maior proteção da miudagem.
Em 2017, os irmãos Rei Vilar tinham encontrado em Suzana um homem branco, da ONG VIDA – Voluntariado Internacional para o Desenvolvimento Africano, organização criada em 1992, com sede em Lisboa, na Rua Nova do Almada (http://vida.org.pt), que focou muito da sua atividade na Guiné, em prol de contribuir para acudir às prementes necessidades de nutrição, mormente das crianças, através duma implementação correta do Programa Nacional de Nutrição da Guiné-Bissau que contribua para a sua sustentabilidade. Como é lógico, gerou-se, de imediato, uma útil parceria com a futura ‘associação’ das boas vontades que a família conseguira congregar em torno de si. A partir desse encontro, a figura de um felupe, o Sr. Olálio Neves Trindade, hoje responsável da ONG VIDA na Guiné-Bissau, veio a ser o homem de campo do Projeto, em colaboração com o Prior de Suzana Padre Vítor Pereira.
Os media foram indispensáveis para manter uma ligação quase quotidiana com Suzana e para difundir as atividades do Projeto. E, a 18 de fevereiro de 2020, 50 anos depois da morte do Capitão, dia após dia, as novas instalações pré-escolares foram solenemente reinauguradas, com o nome Jardim-Escola Capitão Luís Filipe Rei Vilar, nome escolhido pela Direção do Agrupamento Escolar de Suzana, na presença de doze padrinhos e madrinhas, que se deslocaram a Suzana para esse fim, das autoridades locais (administrativas, religiosas e escolares) e do Comité das Mães.
Atualmente, o Jardim-Escola tem uma capacidade para mais de 70 crianças e o Agrupamento Escolar de Suzana, que resultou da pequena escola criada pelo Capitão Rei Vilar, é frequentado por mais de 700 alunos. A construção de uma Residência dos Professores de Suzana foi o segundo objetivo do projeto em 2021, crucial para fixar os docentes em alojamentos condignos. A nova residência encontra-se terminada desde julho de 2021 e apta a acolher os professores a partir do próximo ano letivo: foi entregue nas últimas semanas às entidades escolares. A reabilitação do Jardim-Escola assim como a construção da nova Residência para professores foram totalmente pagas com os donativos do apadrinhamento das crianças.
O que falta?
Compreende-se, porém, que projetos deste teor nunca podem considerar-se terminados e, após uma solução encontrada, outro problema por resolver se depara com premência. Neste sentido e neste momento, um terceiro projeto tem como objetivo reabilitar os restantes edifícios escolares, incluindo o acabamento do Liceu, que foi inteiramente construído pela comunidade de Suzana.
Em Março de 2020, a Associação Anghilau, recentemente constituída, decidiu dar conhecimento do trabalho realizado em Suzana à Câmara Municipal de Cascais, tendo sido pedida, para esse efeito, uma reunião com a Divisão das Relações Internacionais. Nessa reunião, a Câmara dispôs-se a analisar este terceiro projecto, baptizado de Projecto Cascais-Suzana, que se encontra ainda em apreciação. A aprovação desse projecto seria, de facto, o reconhecimento de todo o trabalho realizado até aqui e também, de certa forma, uma maneira de o Município poder honrar, tal como os Felupes o fizeram, a memória do Capitão Luís Filipe Rei Vilar, um filho de Cascais, sempre presente nesta vila e no coração dos habitantes de Suzana.
José d’Encarnação