Em abril de 2016, um de nós, irmãos do Capitão Rei Vilar, recebeu um e-mail de um desconhecido. Era de um estudante de doutoramento que andava em terras Felupes a recolher informações nesta região sobre questões de Saúde, mais precisamente numa aldeia do Cacheu com um nome de mulher, Suzana, no norte da Guiné-Bissau.
Durante esse trabalho que durou quatro meses, Luís Costa, assim se chamava este estudante, ia interrogando a população desta comunidade. Não nos conhecia nem nunca tinha ouvido falar de nós nem do nosso irmão Luís. Mas, ao entrevistar a população, de Suzana ouvia repetidas vezes referências a um tal Capitão Rei Vilar que os Felupes recordavam com muita devoção.
Luís Costa teve curiosidade em saber quem seria o tal Capitão Rei Vilar e foi procurar na Internet. E através dum blogue “Camaradas da Guiné”, ao qual nós tínhamos aderido, conseguiu obter o e-mail de um de nós. O texto do e-mail que enviou referia as constantes referências da população de Suzana ao Capitão Rei Vilar e as boas memórias guardadas pelos habitantes de Suzana que consideravam o nosso irmão como um homem bom; isto, 46 anos depois de o Luís ter sido morto em combate no contexto de uma operação militar perto da fronteira com o Senegal.
O Luís regressou à metrópole uma só vez durante a sua comissão. Nessa altura, trouxe consigo para nossa casa e para a nossa mesa um homem de etnia felupe que era um dos guias da companhia de cavalaria que ele comandava. Chamava-se António Blata que teria aproximadamente a idade do nosso irmão. Já conhecíamos os Felupes desde há 47 anos porque o nosso irmão Luís nos tinha falado muito deles e isso com grande entusiasmo durante a sua estadia na metrópole.
O Luís tinha-nos falado das suas tradições guerreiras e da Luta Felupe. O Luís mostrou-nos muitas fotos de Suzana e dos seus habitantes que, mesmo sem os conhecermos, ficariam gravados para sempre nas nossas memórias. E por último, ele tinha-nos falado da saudação dos Felupes: “Kassumai” que numa só palavra integra três votos “Liberdade, Paz e Felicidade” e cuja resposta é “Kassumai Kep” que quer dizer “Para sempre”.
A mensagem que recebemos do Luís Costa em abril de 2016 deixou-nos surpresos, e a pergunta que imediatamente surgiu foi: o que fazer? E a resposta dos três foi unânime e espontânea: vamos a Suzana. Se os Felupes se recordam do nosso irmão com tanto afeto, merecem toda a nossa estima e a nossa visita. São nossos amigos! Vamos a Suzana!
Mas atenção, ir a Suzana não é o mesmo que ir a Paris ou a Bruxelas. Suzana é uma aldeia perdida no meio da África e a viagem teria de ser muito bem organizada. Para isso foram necessárias longas conversas com o nosso único contacto, o Luís Costa, para prepararmos convenientemente a nossa viagem. Além disso, seria imprudente partirmos durante a estação húmida e seria melhor esperarmos pela estação seca.
Assim, em janeiro de 2017, fizemos as malas e partimos para visitarmos os Felupes de Suzana e conhecer as recordações e memórias que eles guardavam do nosso irmão Luís, o Capitão Rei Vilar. Mas Suzana não tem lojas, nem restaurantes e muito menos hotéis. O Luís Costa sugeriu que nos puséssemos em contacto com a Missão Católica para nos acolher. E foi aí que encontrámos guarida, nuns casebres anexos à Missão onde havia um fio de água para nos lavarmos, o que já por si era um luxo, e umas enxergas onde poderíamos colocar os sacos-cama.
O avião levou-nos de Lisboa até Bissau.
Em Bissau, ficámos três dias num hotel para organizarmos a nossa viagem com o nosso guia Felupe Adriano Djamam, também recomendado pelo Luís Costa, e alugarmos uma carrinha suficientemente robusta para nos levar até Suzana. Os primeiros 120 km da viagem fizeram-se relativamente bem, apesar de termos tido de trocar de carrinha no princípio do percurso.
De Bissau a São Domingos, a cidade mais próxima de Suzana, as estradas estavam relativamente boas ao contrário dos últimos 35 km, de São Domingos até Suzana, que foram feitos em mais de 4 horas devido à estrada de terra estar quase impraticável cheia de buracos, cheia de fendas e sem qualquer proteção nas bermas, o que dificultava o avanço da carrinha.
Mas valeu a pena, pois, à chegada de Suzana, fomos recebidos por centenas de crianças que ladeavam a estrada, e pelos professores da escola de Suzana. Todas as crianças, limpas e impecavelmente vestidas, cantavam e batiam palmas para nos darem as boas vindas. Não estávamos à espera desta receção tão cordial, tão emocionante.
Passámos cinco dias em Suzana onde conhecemos muita gente, entre outros, o Padre José Fumagalli, mais conhecido por Padre Zé, Prior de Suzana há dezenas de anos que ainda conheceu o nosso irmão Luís e nos relatou, nomeadamente, a sua ação na aldeia e os acontecimentos do dia da sua morte. Depois, abraçámos os filhos do Blata e reunimo-nos com os Homens Grandes. Aí, ouvimos então muitas histórias da boca dos anciãos, confirmando que, para além das preocupações militares, o nosso irmão se preocupava genuinamente com a vida dos habitantes de Suzana. Foi aí que se confirmou que o Luís tinha mandado construir a primeira Escola de Suzana.
Soubemos também que as crianças eram todos os dias recolhidas num raio de 5 km para irem à escola e que comiam do rancho dos soldados no aquartelamento, antes de serem levadas de volta às suas tabancas pelos soldados. E, como comiam da sopa dos soldados eram, e ainda são, apelidados de “sopitos”.
No primeiro dia visitámos a Escolinha que o Luís tinha mandado construir. Apesar de estar num estado decrépito continuava ainda a funcionar como Jardim de Infância. O mobiliário era escasso, constituído por bancos corridos onde as crianças de 4 a 6 aninhos unicamente podiam cantar, bater palmas e mexer as perninhas dum lado para o outro. Além disso, nada mais podiam fazer: nem escrever, nem desenhar, nem mesmo aprender as letras ou os algarismos.
Tudo isto nos impressionou muito e nos motivou a ajudar estas crianças no que é primordial no ser humano: a Educação! Estas crianças serão amanhã os homens e as mulheres deste pequeno País, um dos mais pobres do Mundo, e precisam de ajuda.
No final da nossa estadia, decidimos de forma espontânea realizar um projeto de apadrinhamento em colaboração com a Missão Católica para melhorarmos a educação destas crianças, tanto mais que os Felupes de Suzana não se fizeram rogados e nos pediram ajuda, e todos sabemos que tudo falta neste País onde há tantos problemas e tantas necessidades. Este foi o início do Projeto KASSUMAI. Assim, com a Missão Católica e com a Escola de Suzana organizámos uma sessão de fotografias. Cada criança foi fotografada com o seu nome e a data de nascimento escritos num papel. Não foi muito fácil porque alguns tiveram medo de serem fotografados. Depois do nosso regresso, reunimos os nossos amigos mais chegados e os nossos familiares num almoço de confraternização para lhes contarmos a nossa viagem.
Fizemos um filme sobre o Luís e sobre Suzana.
E os nossos amigos partilharam da nossa emoção e compreenderam o nosso objetivo: ajudar as crianças de Suzana. Dar-lhes Educação! Saber ler, contar e escrever é essencial para cada ser humano mas ir ainda mais longe, aprender uma profissão é também muito útil. E todos compreenderam. E todos se prontificaram a ajudar e a apadrinhar as crianças que tínhamos fotografado.
Até 2020, com o apoio de padrinhos e benfeitores, o Jardim-Escola passou por uma transformação significativa. As paredes internas e externas foram pintadas, o telhado danificado foi substituído por um novo telhado de chapa de zinco tradicional, e o chão de terra batida foi revestido com mosaicos. As portas foram reparadas, e as antigas latrinas, que se encontravam em péssimas condições, foram substituídas por novas instalações, agora equipadas com fossas séticas modernas.
Além disso, foi adquirido um mobiliário adequado para a educação pré-primária, composto por 10 mesas hexagonais e 60 cadeirinhas, para acomodar as 60 crianças que frequentavam o Jardim-Escola na época. Duas pérgulas foram construídas para servir como espaço de refeições e recreio, oferecendo abrigo tanto nos dias de sol quanto de chuva. O terreno ao redor foi limpo, e um gradeamento foi instalado para garantir maior segurança às crianças. Essas melhorias resultaram em um ambiente mais seguro, estimulante e saudável para o desenvolvimento das crianças.
E foi assim que nasceu o Projeto Kassumai que reuniu amigos e familiares nossos que contribuíram para a reconstrução do Jardim-Escola de Suzana. Nada acontece por acaso! O Blogue dos Combatentes da Guiné-Bissau recorda que para além das leituras históricas e políticas da guerra colonial, existem inúmeras histórias pessoais de quem combateu, de quem esteve lá, de quem não esteve lá, de quem viu gente morrer de perto, e de quem perdeu familiares seus. Esta história faz parte do último tipo de leituras. O certo é que os Felupes de Suzana, e a família Rei Vilar partilham a mesma memória do nosso Luís, que para eles será sempre a do Capitão Rei Vilar, o Capitão dos Pretos, como eles o apelidavam. E desta partilha nasceu um pequeno exemplo de como a memória de alguém, que partiu há 50 anos, pode ser transformada utilmente em amizade e solidariedade entre os povos.
Em 2020, voltámos a Suzana mas desta vez éramos 12 entre madrinhas, padrinhos e amigos do Projeto Kassumai. Íamos para inaugurar o Jardim-Escola. O Diretor da Escola de Suzana insistiu em dar o nome do nosso irmão ao Jardim-Escola que foi batizado “Jardim-Escola Capitão Luís Filipe Rei Vilar”.
Em 18 de fevereiro de 2020, no 50º aniversário da morte do Capitão, dia por dia, e por iniciativa da Direção do Agrupamento da Escola de Suzana, o Jardim-Escola foi inaugurado com o nome de "Jardim-Escola Capitão Luís Filipe Rei Vilar". Com o êxito assegurado do nosso Projeto, quisemos continuar a ajudar Suzana. Não só as crianças, mas também os jovens e mesmo a Comunidade.
E foi assim que a Associação Anghilau foi constituída em fevereiro de 2020.