E AS LÁGRIMAS SECARAM-SE-LHE NOS OLHOS PARA SEMPRE...

Eu também fui acompanhar o meu irmão ao embarque para o Niassa, um navio da Companhia Colonial de Navegação. 

Foi em julho de 1969 e o Niassa não ia desta vez para Moçambique mas para a Guiné. Lembro-me da aflição da minha mãe a ver o seu filho mais velho partir para a Guerra. O Luís era Capitão de Cavalaria e ia comandar uma Companhia no Norte da Guiné numa aldeia a 10 km do Senegal com um nome estranho, um nome de mulher: Suzana. O Luís tinha 28 anos. Já era casado e tinha 2 filhos de tenra idade: o Tiago e o João Luís. 

O ambiente combinava a aparente jovialidade dos jovens soldados que partiam e a tristeza dos familiares que se iam despedir. Eu tentava consolar a minha mãe dizendo que o Luís estava preparado para a Guerra. Ao fim e ao cabo, era o trabalho dele. E ele era um jovem Capitão mas muito consciente das suas responsabilidades e bem preparado, muito bem preparado.  E o  barco ia-se afastando rumo ao horizonte. Nós seguíamos de Alcântara para Cascais no carro do nosso amigo Filipe Matos que se tinha prontificado a nos acompanhar. Chegando a Oeiras, vimos o Niassa ainda não muito longe da Costa. 

Perto do Forte de São Julião da Barra, Maria do Carmo, a minha mãe, pediu ao amigo Filipe para ele estacionar o carro. Ela saiu do carro e galgou pelas rochas do Forte de São Julião para se aproximar um pouco mais do Niassa. O barco estava ali, face aos nossos olhos, mas rumando já para fora da Barra. Mas a Maria do Carmo continuava a caminhar pelas rochas para se aproximar um pouco mais do seu querido filho que ia para a guerra… até que o barco foi desaparecendo no horizonte e vi a minha mãe lavada em lágrimas voltar para o carro. 

Mas o Luís voltou. 

Voltou em Dezembro. Vinha com o seu cão, um pastor alemão que se chamava Askur. Com ele vinha também um homem negro, o seu guia Felupe, a etnia que povoa Suzana. Chamava-se António Blata mas nós, os irmãos, começámos logo a chamar-lhe Mulata. Também tinhas filhos miúdos lá na Guiné. Gostámos muito dele e ele de nós. Os meus irmãos mais novos levaram-no ao Circo ao Coliseu e ele ficou maravilhado. Toda a família veio à nossa casa ver o Luisinho. Era assim que nós lhe chamávamos. E lá vieram os meus avós, os meus tios e os meus primos e muitos amigos. E a minha avó, cheia de inquietação, a dizer-lhe: 

- Luisinho tem cuidado, tem muito cuidado, vê lá que nós todos queremos que tu venhas de boa saúde. 

E ele respondeu à minha avó: 

- Posso vir de pés juntos, mas virei sempre com honra!... 

Esta frase ainda continua viva na minha cabeça: 

- Posso vir de pés juntos, mas virei sempre com honra! 

O Luís regressaria à Guiné alguns dias mais tarde e desta vez por via aérea. Perante o sofrimento da primeira partida, implorámos à nossa mãe para não ir ao Aeroporto porque não a queríamos ver naquele sofrimento a passar uma segunda aflição na partida do Luís. Mas ela queria ir e insistia... mas acabou por se convencer... mas chorava amargamente ao ver-nos partir para o Aeroporto. E o Luís lá foi. Lembro-me dele nos acenar à saída do embarque. E esta foi a última vez que vi o meu irmão. 

No dia 18 de fevereiro de 1970, no principio do ano seguinte, antes de ir para o Técnico dar as minhas primeiras aulas universitárias, tinha de dar uma explicação de Matemática à Micà, uma miúda que tinha horror a esta disciplina. Para ela, os números eram sempre uma enorme complicação e as expressões numéricas, então, um terrível quebra-cabeças. As potências e os expoentes eram, para ela, incompreensíveis. Eu acompanhava esta mocinha três vezes por semana e com poucos resultados visíveis.  E ali estava eu mais uma vez com toda a minha paciência e atenção a ajudar a Micá na Aritmética quando batem à porta da sala onde estava a dar a explicação. Não era costume interromperem-me. Fui abrir e era o meu pai mais o Vítor, um senhor amigo. Vi imediatamente que se passava algo de importante e grave. O meu pai agarrou-se a mim e disse-me: o Luisinho foi ferido em combate. Com o meu pai agarrado a mim, olhei para o amigo Vítor que me fez um sinal com a cabeça e aí, só com esse sinal, compreendi que ele não estava “ferido”... mas estava morto! E, sem mais, o meu pai disse-me: - Vai dizer à tua mãe que eu não consigo! 

A minha mãe estava de cama com um problema na coluna vertebral. Há vários dias que ela estava de cama. Quando eu entrei no quarto, ela viu logo que algo se passava e perguntou-me: - O que é que foi? E eu abracei-me a ela a chorar. Soluçava enquanto ela me acariciava o cabelo e continuava a perguntar o que é que eu tinha. - O que é que tens, filhinho? Então eu murmurei: o Luisinho foi ferido em combate… A minha mãe não chorou, e nunca mais chorou na vida, porque as lágrimas secaram-se-lhe nos seus olhos para sempre…